top of page

A ancestral biologia dos cnidários

Atualizado: 11 de nov. de 2022

Autores: Alexandre Lopes, Rodrigo Siqueira-Batista, Pedro Freitas de Carvalho e André Carrara Morandini



Phyllorhiza punctata, representante da classe Scyphozoa. Imagem do Prof. Dr. Alvaro Esteves Migotto (USP). Especialista: André Carrara Morandini (USP). Fonte: banco de imagens Cifonauta (CC BY-NC-SA 3.0).



O filo Cnidaria representa um grupo muito antigo de animais aquáticos, em sua maioria marinhos, que surgiram há mais de 500 milhões de anos, estimativa baseada em fósseis do período Cambriano. Estão descritas, até o momento, mais de 13 mil espécies, incluindo águas-vivas, hidras, corais, anêmonas-do-mar, dentre outros. Os cnidários são agrupados por uma característica única e exclusiva: a presença de cnidas, estruturas localizadas dentro das células e relacionadas à produção e à inoculação de toxinas. Os cnidários são animais diblásticos e que possuem corpo com simetria radial, sistema digestivo incompleto e estruturas nervosas primitivas (de fato, provavelmente são os primeiros organismos a desenvolver neurônios e estruturas sensoriais, ainda que não apresentem cefalização).


Este filo é composto por seis classes – de acordo com o World Register of Marine Species (WoRMS) e com o Catálogo Taxonômico da Fauna do Brasil (CTFB) – com destaque para a maior delas, a Anthozoa, representada principalmente pelos corais e anêmonas-do-mar. Em seguida vem a classe Hydrozoa, que inclui organismos como as hidras e as caravelas, e a Myxozoa, caracterizada por diversos organismos parasitas. Outras classes são Scyphozoa, Staurozoa e Cubozoa, sendo todas estas representadas pelas medusas ou águas-vivas.


Os cnidários desempenham papéis importantes nas relações ecológicas com outros animais e contribuem para a riqueza e a manutenção dos ambientes aquáticos. Esses invertebrados possuem relações complexas nos ecossistemas em que vivem, ocupando diferentes posições na cadeia alimentar. Por conta disso – íntima relação com o local habitado – costumeiramente são muito afetados pelas mudanças observadas nos mares, como poluição e aquecimento das águas, o que pode ser exemplificado principalmente pelo branqueamento dos corais. Além desse aspecto, são relevantes do ponto de vista médico, dado o risco de provocarem acidentes em seres humanos, por vezes graves – estimam-se cerca de 150 milhões de acidentes no mundo anualmente – e a potencialidade para a descoberta de novos medicamentos.


O objetivo deste artigo é a apresentação geral dos cnidários, com destaque para suas principais características, classes e representantes.


Lychnorhiza lucerna (medusa adulta), representante da classe Scyphozoa. Note a presença do caranguejo-aranha Libinia ferreirae no interior do corpo da água-viva, dentro do qual passa parte da vida. Imagem do Prof. Dr. Alvaro Esteves Migotto (USP). Especialista: André Carrara Morandini (USP). Fonte: banco de imagens Cifonauta (CC BY-NC-SA 3.0).



CARACTERÍSTICAS GERAIS


A estrutura corporal básica dos cnidários é formada por um corpo que envolve uma cavidade de saída única e cercada por tentáculos, considerada a extremidade oral do animal. Devido à coroa de tentáculos ao redor da boca, esses invertebrados possuem, tipicamente, simetria radial. São considerados diblásticos, já que seus tecidos se desenvolvem a partir de apenas dois folhetos embrionários: ectoderme e endoderme. Encontram-se como organismos solitários ou coloniais, que podem se apresentar na forma de pólipo ou de medusa, de acordo com a fase do ciclo de vida.


Os pólipos têm formato colunar, são eventualmente revestidos por um exoesqueleto, a base do corpo fica em contato com o substrato e abertura da cavidade oral geralmente voltada para cima. Já as medusas têm formato de sino ou guarda-chuva, a abertura da cavidade oral voltada para baixo e o corpo sustentado por um tecido gelatinoso chamado mesogleia.


As cnidas, como já comentado, são estruturas típicas destes organismos, que se distribuem pelas superfícies externa e interna do animal, principalmente nos tentáculos. Apresentam variados tipos e funções, desde a captura de presas até a adesão ou sustentação. O nematocisto é a principal cnida, cuja participação na defesa e na alimentação é central. Ademais, é responsável pelos casos de acidentes em seres humanos, que podem causar desde lesões leves na pele até a morte do indivíduo.


Os órgãos e sistemas dos cnidários, em geral, são simples, incompletos ou inexistentes. O aparelho digestório é representado pelo celêntero – que nada mais é do que a cavidade gastrovascular, a qual se comunica com o meio externo pela boca e atua na digestão dos alimentos – e suas células de revestimento, onde ocorre digestão intra e extracelular e absorção dos nutrientes. Estes invertebrados têm alimentação predominantemente carnívora, baseada em pequenos animais marinhos e partículas em suspensão, mas algumas espécies podem também se relacionar com algas fotossintetizantes ou realizar parasitismo. O sistema nervoso tem uma organização difusa, com maior densidade em regiões como a cavidade oral e os tentáculos. Os sistemas circulatório, respiratório e excretor não possuem organização e suas funções ocorrem pela difusão através da parede do corpo e superfície dos tentáculos. A locomoção depende da fase da vida: pólipos têm movimentação muito reduzida – geralmente são fixos –, enquanto medusas deformam o corpo para gerar propulsão e deslocamento.


O ciclo de vida dos cnidários pode envolver as fases de pólipo e de medusa, dependendo das formas de reprodução desses animais. A maioria das espécies possui indivíduos de sexos separados ou são raramente hermafroditas, com reprodução sexuada ou assexuada. A reprodução sexuada implica na formação de gametas que são liberados na água, onde ocorre a fecundação e formação de um zigoto, o qual evolui para a forma larval, chamada plânula, antes de formar um indivíduo imaturo. A reprodução assexuada engloba mecanismos como brotamento, fragmentação ou fissão para formar novos indivíduos. Uma forma interessante de reprodução assexuada é a estrobilização (apenas na classe Scyphozoa), na qual pólipos dividem o corpo transversalmente, formando pequenos discos de tecidos que se diferenciam e originam medusas imaturas.



CLASSE ANTHOZOA


Anthozoa é a única classe na qual alguns de seus representantes possuem outros tipos de cnidas, além dos nematocistos. São exclusivamente polipóides, vivem de forma solitária ou colonial, e podem desenvolver um esqueleto mineral ou proteico para sustentação e proteção. Se diferenciam pela presença de actinofaringe, um tubo ciliado que liga a boca ao celêntero. Apesar de menos frequentes, os antozoários também podem causar acidentes em humanos, como é o caso de anêmonas dos gêneros Condylactis e Alicia, capazes de provocar lesões por contato, e dos corais verdadeiros, potenciais causadores de traumatismos (cortes e/ou perfurações da pele). Esses organismos são sensíveis a variações ambientais, e ameaças a eles estão diretamente relacionadas ao aumento dos impactos causados pelo homem, como poluição do ambiente marinho, aquecimento global, acidificação dos oceanos, entre outros.



CLASSE CUBOZOA


Cubozoa inclui espécies de formato cuboide, com tentáculos de base espessada, concentrados nos cantos inferiores do cubo e pela presença de ropálios (conjunto de órgãos sensoriais) bem desenvolvidos, os quais são estruturas sensitivas na parte externa das medusas. Seu integrante mais conhecido é a cubomedusa Chironex fleckeri, popularmente chamada "vespa-do-mar", encontrada na região da Austrália. Este cnidário representa um dos animais mais peçonhentos já estudados. Outras espécies que se destacam são Chiropsalmus quadrumanus e Tamoya haplonema, encontradas no Brasil, e Carukia barnesi, responsável pela Síndrome de Irukandji, complicação grave de acidentes envolvendo seres humanos.



CLASSE HYDROZOA


Espécies da classe Hydrozoa podem ter o hábito colonial ou solitário, em vida livre ou fixados aos substratos (sésseis), tanto na forma de pólipos como de medusas. São encontrados também em ambientes de água doce, como algumas hidras. Em algumas espécies, medusas imaturas podem surgir por brotamento lateral de pólipos adultos. Um representante comum no Brasil, principalmente no Norte e no Nordeste, facilmente identificável por seu flutuador roxo-azulado, é a Physalia physalis, chamada de “caravela-portuguesa”, responsável por muitos acidentes com humanos. Outra espécie importante nesse aspecto é a hidromedusa Olindias sambaquiensis, comum no Sul e Sudeste do Brasil, conhecida como água-viva reloginho.



CLASSE MYXOZOA


A classe Myxozoa – anteriormente alocada dentro dos protistas – abrange, especialmente, organismos ictioparasitas, ou seja, que parasitam peixes. Tais organismos, que podem ser encontrados em ambientes de água doce ou salgada, têm possibilidade de causar prejuízos à aquicultura e à população selvagem de peixes. Há relatos de surtos de intoxicação alimentar no Japão causados pelo mixozoário Kudoa septempunctata, após ingestão do peixe linguado japonês crub.



CLASSE SCYPHOZOA


A classe Scyphozoa abrange espécies exclusivamente marinhas. Seu ciclo de vida inclui uma fase dominante de medusa, com reprodução sexuada, alternando com uma fase polipóide, de reprodução assexuada. A presença do ropálio também é característica importante desse grupo. Alguns cifozoários produzem acidentes em humanos, como Linuche unguiculata – medusa cujas larvas podem causar lesões de pele conhecidas como prurido do traje de banho –, Chrysaora lactea, Pelagia noctiluca e Cyanea capillata. Esses organismos podem intensificar a sua reprodução e ocorrer em grandes números (blooms) de acordo com alterações ambientais, o que lhes confere uma característica de bioindicador de impacto no ambiente marinho. Como consequência, o aumento desordenado das cifomedusas pode impactar a pesca e a aquicultura.



Chrysaora lactea, representante da classe Scyphozoa. A imagem mostra uma éfira (ou seja, larva livre nadante). Imagem do Prof. Dr. Alvaro Esteves Migotto (USP). Especialista: André Carrara Morandini (USP). O vídeo desta espécie em movimento poderá ser consultado aqui. Fonte: banco de imagens Cifonauta (CC BY-NC-SA 3.0).


Chrysaora lactea (medusa adulta), representante da classe Scyphozoa. Imagem do Prof. Dr. Alvaro Esteves Migotto (USP). Especialista: André Carrara Morandini (USP). Fonte: banco de imagens Cifonauta (CC BY-NC-SA 3.0).



CLASSE STAUROZOA


A classe Staurozoa inclui animais pequenos, mais concentrados em águas temperadas, tanto em regiões costeiras quanto profundas. Muitas características destes organismos, como ciclo e hábitos de vida, são ainda pouco conhecidas. Popularmente são chamadas de medusas pedunculadas por viverem presas a algas e rochas.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


Os cnidários, a despeito de sua aparente simplicidade, são animais muito antigos, dotados de exuberante capacidade de adaptação e de grande diversidade de espécies, o que os torna muito relevantes do ponto de vista ecológico. Ademais, (1) a gama de substâncias biologicamente ativas produzidas por estes invertebrados, (2) as possibilidades de interações potencialmente danosas aos seres humanos, com adicional relevância em termos médicos, e (3) a variação das suas densidades podem servir como resposta para impactos antrópicos, lhes conferindo um importante papel de bioindicador ambiental.




Escute este artigo também pelo nosso Podcast. Clique aqui!



Bibliografia


BOERO, F. Review of jellyfish blooms in the Mediterranean and Black Sea. In: Studies and Reviews. General Fisheries Commission for the Mediterranean. No. 92. Rome, FAO, 2013. P. 53.


BRUSCA, R. C.; MOORE, W.; SHUSTER, S. M. Invertebrados. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 2018.


DALY, M.; BRUGLER, M.R.; CARTWRIGHT, P.; COLLINS, A.G.; DAWSON, M.N.; FAUTIN, D.G. et al. The phylum Cnidaria: A review of phylogenetic patterns and diversity 300 years after Linnaeus*. Zootaxa, v. 1668, p. 127-182, 2007. [doi: 10.5281/zenodo.180149].


FERREIRA, B.P.; MAIDA, M. Monitoramento dos recifes de coral do Brasil – situação atual e perspectivas. Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Biodiversidade e Florestas, Brasília, 2006.


HADDAD, V.; DA SILVEIRA, F. L.; CARDOSO, J. L. C.; MORANDINI, A. C. A report of 49 cases of cnidarian envenoming from southeastern Brazilian coastal Waters. Toxicon, v. 40, n. 10, p. 1445-1450, 2002. [doi: 10.1016/s0041-0101(02)00162-9].


HEADLAM, J. An investigation of harmful jellyfish mitigation measures: From sting management to jellyfish forecasting. [PhD thesis]. NUI Galway, 2010.


JAIMES-BECERRA, A.; CHUNG, R.; MORANDINI, A. C.; WESTON, A. J.; PADILLA, G.; GACESA, R. Comparative proteomics reveals recruitment patterns of some protein families in the venoms of Cnidaria. Toxicon, v. 137, p. 19-26, 2017 [doi: 10.1016/j.toxicon.2017.07.012].


KARLOH, T.A.; NAGATA, R.; SILVEIRA, R.A.D.; SEMPREBOM T.R.; PEIRÓ, D.F. Acidentes com águas-vivas no Brasil: um problema em ascensão? Bióicos, 2019. Disponível em: <https://www.bioicos.org.br/post/2019/03/31/acidentes-com-aguas-vivas-no-brasil-um-problema-em-ascensao>. Acesso em: 07/07/21.


KAWAI, T.; SEKIZUKA, T.; YAHATA, Y.; KURODA, M.; KUMEDA, Y.; IIJIMA, Y.; et al. Identification of Kudoa septempunctata as the causative agent of novel food poisoning outbreaks in Japan by consumption of Paralichthys olivaceus in raw fish. Clinical Infectious Diseases, v. 54, n. 8, p. 1046-1052, 2012 [doi: 10.1093/cid/cir1040].


LOM, J.; DYKOVÁ, I. Myxozoan genera: definition and notes on taxonomy, life-cycle terminology and pathogenic species. Folia Parasitologica, v. 43, p. 1-36, 2006.


MATOS, E.; CORRAL, L.; MATOS, P.; CASAL, G.; AZEVEDO, C. Incidência de parasitas do Phylum Myxozoa (Sub-reino Protozoa) em peixes da região amazônica, com especial destaque para o gênero Henneguya. Revista Brasileira de Ciências Agrárias, v. 36, p. 83-99, 2001.


MIGOTTO, A. E. A vida dupla de Dipurena. Banco de imagens Cifonauta. Disponível em: http://cifonauta.cebimar.usp.br/media/11632/. Acesso em: 2021-08-27.


RODRIGUES, L.; JERONIMO, F. C.; COSTA, A. P.; SILVEIRA, R. A. D.; PEIRÓ, D. F. Reprodução de corais branqueados: uma esperança à conservação. Bióicos, 2021. Disponível em: < https://www.bioicos.org.br/post/reproducao-de-corais-branqueados-uma-esperanca-a-conservacao>. Acesso em: 07/07/21.


SILVEIRA, F. L. O ciclo de vida de Nausithoe aurea. Banco de imagens Cifonauta. Disponível em: http://cifonauta.cebimar.usp.br/media/11633/. Acesso em: 2021-08-27.


TECHNAU, U.; STEELE, R.E. Evolutionary crossroads in developmental biology: Cnidaria. Development, v. 138, n. 8, p. 1447-1458, 2011. [doi:10.1242/dev.048959].


VIDEIRA, M.; VELASCO, M.; SANCHES, O.; MATOS, P.; SANTOS, P. S. First report of Kudoa sp. in the palate and pharyngeal musculature of Gobioides grahamae Palmer and Wheeler, 1955 (Perciformes, Gobiidae) from Marajó Island, Brazil. Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, v. 72, n. 2, p. 517-522, 2020 [doi: 10.1590/1678-4162-11081].


WoRMS (2021). Cnidaria. Disponível em: <https://www.marinespecies.org/aphia.php?p=taxdetails&id=1267>. Acesso em: 31/07/2021.




1.755 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Faça parte!

Contribua com o Projeto Bióicos para a continuidade de nossas produções voluntárias, como: Revista, Poscast, Youtube e Instagram

Participe da vaquinha virtual via PIX

Chave Pix CNPJ: 29.093.477/0001-40
Responsável: prof. Dr. Douglas F. Peiró

Assine a lista e receba as novidades!

Obrigado pelo envio! Verifique seu e-mail e marque-nos como contato seguro!

bottom of page