Autores: João Pedro Cruz Colombari, Rodrigo Siqueira-Batista, Renato Neves Feio, Salvatore Siciliano
Narcine brasiliensis. Fonte: imagem gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Fernando C. de Moraes ©/Museu Nacional/UFRJ.
As raias (ou arraias) são peixes cartilaginosos pertencentes à Subclasse Elasmobranchii, presentes em regiões oceânicas tropicais, subtropicais e temperadas. Nessas localidades, permanecem geralmente ao longo do leito marinho, repousando sobre bancos de areia (vale ressaltar que algumas espécies são nadadoras na coluna d’água). A exceção diz respeito à família Potamotrygonidae, que ocorre em ecossistemas de água doce na América do Sul. A maioria das espécies são encontradas ao longo das plataformas continentais, dispersas por todo o mundo. Todavia, mais recentemente, tem sido observada uma queda brusca das populações desses animais, devido principalmente à pesca de arrasto e às alterações nos ambientes em que vivem.
A classificação taxonômica das raias é apresentada a seguir.
Reino: Animalia
Superfilo: Bilateria
Filo: Chordata
Subfilo: Gnathostomata
Classe: Chondrichthyes
Os peixes cartilaginosos apresentam, como diferencial, um esqueleto formado por cartilagens calcificadas, sem ossificação. As raias caracterizam-se por exibir um achatamento dorsoventral, e são distinguíveis por meio de aspectos da sua morfologia e história natural. Alguns grupos exibem caudas alongadas que sustentam nadadeiras, enquanto outros têm a cauda em forma de chicote, com um espinho serrilhado e dotado de venenoso. As nadadeiras peitorais são bem desenvolvidas, com aspecto de asas, útil para o deslocamento no leito oceânico.
Apesar de relativamente ancestrais no quesito evolutivo, esses vertebrados dispõem de sistemas sensoriais sofisticados, os quais são relevantes para a orientação do animal. Assim como os demais peixes, as raias não possuem uma boa audição. Entretanto, são dotadas das “ampolas de Lorenzini”, estruturas que permitem direcioná-las conforme as percepções de alterações dos campos elétricos no ambiente, incluindo os de suas presas.
Aetobatus narinari. Fonte: imagem gentilmente cedida pelo Prof. Dr. Fernando C. de Moraes/Museu Nacional/UFRJ.
A presença de um espinho ou ferrão na base da cauda constitui um mecanismo de defesa efetivo para algumas espécies de raias, quando estas encontram-se em situações de ameaça. Tal estrutura é serrilhada, voltada para trás e constituída por um material resistente denominado vasodentina. Nos ferrões existem ranhuras, nas quais há grande quantidade de glândulas com peçonha. Ao realizar o ataque, estas estruturas se rompem e liberam componentes tóxicos no corpo da vítima. É importante notar que partes do ferrão podem permanecer no interior do ferimento, o que aumenta sua gravidade. Algumas raias marinhas também apresentam espinhos dérmicos na região dorsal; deste modo, quando capturadas, devem ser manuseadas com cuidado.
Ilustração de lesão produzida por raias marinhas; note o ferrão na cauda do animal. Fonte: imagem gentilmente elaborada por Douglas Cabral Ferreira Bonafé©/Instituto Bióicos.
Os elasmobrânquios ocupam o topo da cadeia alimentar marinha, adquirindo suma importância para o controle das populações dos ecossistemas. A maioria das raias está adaptada à vida no leito dos oceanos, possuindo dentes fortes e arredondados, próprios para esmagar partes rígidas de moluscos, equinodermos, camarões e caranguejos. Os espécimes podem utilizar técnicas de abalroar, sugar, filtrar, morder ou um conjunto destas como táticas alimentares.
O CICLO DE VIDA E O IMPACTO SOBRE A REPRODUÇÃO
As raias têm sexos separados e realizam fecundação interna. No ciclo reprodutivo, as fêmeas podem liberar ovos de casca dura no ambiente (ovíparas) ou parir uma prole perfeitamente desenvolvida (vivíparas). Esses animais possuem um ciclo reprodutivo prolongado e com um número limitado de filhotes. Na maioria das espécies, a fêmea carrega a prole por nove meses e liberam até 15 raias ao final da gestação, as quais nadam e caçam junto da mãe. O período de crescimento e maturidade sexual é lento, com duração média de oito anos. Há estimativas de que apenas um entre cada dez filhotes alcance a maturidade.
A ação humana, com destruição de habitats, pesca predatória e poluição, vem causando uma queda acentuada no número de espécimes, fato descrito nas últimas atualizações da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O número limitado de pesquisas e dados atuais tornam a análise da situação ainda mais precária. Contudo, a divulgação científica pode contribuir positivamente para democratizar o acesso às informações sobre esse grupo de vertebrados marinhos, além de cooperar para a ampliação do ecoturismo responsável. Já há regiões nas quais pode-se mergulhar tranquilamente com as raias, com chance inclusive de alimentá-las. Esta não seria uma experiência realmente fantástica?
DISTRIBUIÇÃO NO BRASIL
A costa brasileira conta atualmente com 11 famílias de raias marinhas, correspondendo a 66 espécies, distribuídas em 35 gêneros, dentre os quais se ressalta Mobula, o qual foi tema de recente artigo publicado na Revista Biologia Marinha de Divulgação Científica. Nesse texto, expôs-se a imponência das raias-jamanta, as quais se incluem entre os maiores peixes cartilaginosos oceânicos. Ademais, vale ressaltar o trabalho de Bucair e colaboradores, no qual são discutidos o status de conservação e os desafios da preservação desses animais no país.
A presença das raias ao longo do litoral brasileiro é marcada por uma grande diversidade, com destaque para as regiões Sul-Sudeste, principais locais de registro. Tal cenário deve-se, provavelmente, ao fato de muitos estudos concentrarem-se nessas regiões, o que confere maior acurácia em relação aos dados obtidos em tais localidades. Mas, engana-se quem pensa que as demais áreas não possuem registros importantes; de fato, pode-se mencionar, como exemplo, as raias do gênero Fontitrygon, o qual conta com espécies nativas do Brasil, como a raia-de-espinho-de-Colares, Fontitrygon colarensis, descrita apenas em uma pequena área costeira no norte do Brasil, na baía de Marajó. Devido à pressão de pesca, essa espécie é considerada criticamente ameaçada.
Mobula tarapacana. Fonte: imagem cedida gentilmente pelo Prof. Dr. Fernando C. de Moraes ©/Museu Nacional/UFRJ.
ACIDENTES COM RAIAS: COMO AGIR NESSAS SITUAÇÕES?
A presença de pescadores e banhistas em áreas habitadas por raias, principalmente em épocas de férias e de maior fluxo de pessoas, pode levar a acidentes, visto que grande parte desses animais costumam ficar camuflados sob a areia do leito marinho. Ao adentrar o mar, banhistas acabam pisando no dorso do animal, que reage instantaneamente utilizando a cauda como um chicote, atingindo principalmente as regiões do pé ou calcanhar, com a inserção do ferrão na vítima. Além disso, muitas pessoas ainda se ferem – recebendo ferroadas – ao tentar manusear indevidamente animais capturados em redes. Esses acidentes envolvendo peixes marinhos ou fluviais são genericamente denominados ictismo. Os ferimentos provocados por raias produzem necrose da região atingida, com destaque para a dor como sintoma predominante. Geralmente há lesões puntiformes ou lacerações, com manifestações locais bem nítidas. Caso não seja tratado adequadamente, o quadro pode evoluir para infecção bacteriana secundária. Outros sintomas e sinais podem ocorrer: náuseas, vômitos, sudorese, sensação de fraqueza, vertigem e hipotensão arterial (pressão baixa).
Os cuidados, em caso de acidente, devem ser iniciados no local de ocorrência. Aconselha-se a lavagem da lesão com água doce ou solução fisiológica. Água morna, em torno de 40-45 °C, costuma ser utilizada para o alívio da dor. A vítima deve ser encaminhada ao hospital o quanto antes, sem a retirada do ferrão, para que o procedimento seja feito de forma correta por profissionais de saúde capacitados. O profissional avaliará, também, o risco de tétano e, eventualmente, medidas específicas para evitar esta doença poderão ser adotadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O avanço dos estudos e a difusão do conhecimento sobre a biologia e a ecologia das raias – particularmente no âmbito da educação ambiental – é essencial para a conservação dessas formas de vida e, também, para a prevenção de encontros traumáticos com seres humanos.
Dos autores:
João Pedro Cruz Colombari: Departamento de Medicina e Enfermagem, Universidade Federal de Viçosa (UFV)
Rodrigo Siqueira-Batista: Departamento de Medicina e Enfermagem, Universidade Federal de Viçosa (UFV); Escola de Medicina, Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga (FADIP)
Renato Neves Feio: Museu de Zoologia João Moojen, Universidade Federal de Viçosa (UFV)
Salvatore Siciliano: Grupo de Estudos de Mamíferos Marinhos da Região dos Lagos (GEMM-Lagos); Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).
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Meus votos de agradecimentos a toda família Bioícos, por ter me ajudado mais outra vez como tem feito através das publicações sobre a minha área de interesse, biología marinha. Peço tudo de vocês como ajuda para continuar aprender até realização do sonho de ser um biólogo marinho.