Autores: João Antonio C. Veloso, Nicholas Negreiros, Thais R. Semprebom, Raphaela A. Duarte Silveira e Douglas F. Peiró
Ilustração dos organismos da meiofauna habitando o microambiente do interstício - entre os grãos de areia. Fonte: cedido gentilmente por Hakai Magazine.
Por muito tempo, as praias arenosas eram vistas como desertos de biodiversidade. Porém, a descoberta da meiofauna provou ser o contrário. Na areia das praias há espaços entre os grãos (chamados de interstício) que abrigam muitos organismos microscópicos como fungos, algas, bactérias, protozoários e também organismos macroscópicos bentônicos.
A meiofauna pode ser definida como o conjunto de animais pluricelulares entre 0,04 e 0,5 milímetros que habitam o interstício. Ela é considerada temporária se os animais passam apenas fases larvais neste local, ou permanente se os animais passam todos os seus ciclos de vida no ambiente.
Devido à extensão do interstício de muitas praias a meiofauna é rica e diversa, com vários grupos dominantes, como os nematóides, copépodes e anelídeos, além de outros grupos importantes, como turbelários, ostracodes, ácaros e tardígrados. Entretanto, não se assuste, pois esses animais não fazem mal à nossa saúde, mas participam de um importante processo na cadeia alimentar no ambiente marinho auxiliando na remineralização da matéria orgânica, transformando partes orgânicas em compostos mais simples.
Fotografia da meiofauna habitando entre os grãos de areia (interstício). Fonte: adaptado de Soto et al.(2015)/Scielo (CC BY-NC 4.0) e Eurico Zimbres/Wikimedia Commons (CC BY-SA 2.5).
UM MICROAMBIENTE ESTRESSANTE DEBAIXO DE NOSSOS PÉS
Apesar da grande distribuição da meiofauna, não é tão fácil viver entre os grãos de areia, já que os principais fatores limitantes são espaço e oxigênio, que são regulados pela infiltração da água do mar, controlando o clima no microambiente. É a água que regula a concentração de matéria orgânica na areia e desenvolve extremos de estresse químico e físico dentro do sedimento nos diferentes tipos de praia, sejam elas dissipativas ou refletivas.
O estresse químico extremo é comum em praias dissipativas de areia fina, onde a filtragem de água através da areia é ínfima e o aporte de matéria orgânica pode ser alto. Nesse cenário, a entrada de matéria orgânica e o consumo de oxigênio excede o seu suprimento, desenvolvendo perdas graduais de oxigênio da superfície até uma camada reduzida (sem oxigênio). Além disso, devido ao estresse químico, a ampla distribuição dos indivíduos da meiofauna e a sensibilidade dos organismos às alterações ambientais, faz com que a meiofauna também atue como uma fauna bioindicadora de qualidade ambiental de praias.
Esquema de estresse químico extremo em uma praia dissipativa. Fonte: João Antonio C. Veloso © 2020.
O estresse físico extremo ocorre em praias refletivas, sujeitas a fortes ações de ondas, e com areia de granulação grossa na qual grandes volumes de água são drenados rapidamente pela areia, devido à alta permeabilidade (capacidade de um material para transmitir fluidos). Assim, espaços de alta energia entre os grãos de areia são formados, nos quais muitos organismos possuem estruturas que os permitem fixar-se aos grãos, em face à turbulência. Nesse cenário, o interstício é bem oxigenado e viabiliza que a meiofauna tenha uma profunda distribuição vertical até vários metros no sedimento, além de adaptações para as condições do extremo físico (fluxo de água, dessecação durante a maré baixa e perturbação dos sedimentos pela forte ação de ondas).
Esquema de estresse físico extremo em uma praia refletiva. Fonte: João Antonio C. Veloso © 2020.
As mudanças das estações do ano também influenciam o microclima no ambiente da meiofauna. No caso de praias refletivas, podem resultar mudanças na umidade e na temperatura de superfície no interstício. Já nos casos das praias dissipativas, em condições quentes, as camadas reduzidas podem migrar em direção à superfície, enquanto que as atividades fotossintéticas de fitoplâncton no sedimento podem deslocar essa camada ao fundo.
ADAPTAÇÕES DOS ORGANISMOS AO AMBIENTE DE PRAIA
O espaço entre os grãos de areia é um ambiente com diversas particularidades, sujeito a intensas mudanças (dinâmica das marés, pisoteamento, etc.). Por isso, a meiofauna apresenta inúmeras adaptações, como exemplo, um aparato de órgãos sensoriais que os possibilita encontrar alimentos em um ambiente escuro, assim como a ausência de visão etc.
Fotomicrografia do poliqueta Saccocirrus oahuensis, com destaque para seus dois tentáculos flexíveis, aparato sensorial utilizado para guiar-se e buscar comida. Fonte: Smithsonian/National Museum of Natural History (Domínio Público).
Além disso, o tamanho do corpo na meiofauna tende a ser menor ou maior de acordo com o tamanho dos grãos de areia da praia. As paredes do corpo são reforçadas por cutículas, espinhos ou escamas e também pela capacidade de contrair em resposta à abrasão. A locomoção pode ser por deslizamento ciliar, contorcendo-se (nos nematóides) ou rastejando (nos crustáceos). Devido ao baixo número de células destes organismos, a produção de gametas é geralmente baixa e em muitos casos a reprodução geralmente é interna, com ausência de larvas pelágicas.
Também há outras adaptações às mudanças ambientais, como por exemplo no extremo físico, onde fortes correntes e mudanças extremas na umidade e movimento do interstício requerem adaptações especiais como tubos de adesão, cerdas e espinhos. Já no extremo químico, em condições estagnadas, os organismos precisam tolerar compostos tóxicos, como amônio (NH4) e sulfeto de hidrogênio (H2S).
Portanto, é imprescindível a atenção para esse grupo de organismos que desempenham papel importante no ecossistema, seja pela potencialidade como fauna bioindicadora, pela alta diversidade e sensibilidade às mudanças ambientais, também pela facilitação do processo de remineralização da matéria orgânica. Sendo assim, durante sua próxima ida à praia, saiba onde estão estes animais e lembre-se da importância deles!
Bibliografia
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