Autores: João Antonio C. Veloso, Thais R. Semprebom, Raphaela A. Duarte Silveira, Douglas F. Peiró
Gastrópode-do-pé-escamoso (scally-foot gastropod), Chrysomallon squamiferum. Fonte: adaptado de © 2012 Nakamura et al.(CC0).
O Chrysomallon squamiferum, popularmente conhecido como gastrópode-de-pé-escamoso, ou scally-foot gastropod, ocorre em grupos de muitos indivíduos, e se distingue de outras espécies de gastrópode por possuir escamas dérmicas metálicas - de sulfato de ferro (FeSO4) - cobrindo a superfície externa dos seus pés.
O gastrópode-de-pé-escamoso chama atenção por viver em ambientes de fontes hidrotermais, a mais de 300ºC, com condições particulares de baixa concentração de oxigênio e alta concentração de compostos metálicos pesados. O cientista Chong Chen e seus colegas analisaram a estrutura corporal de espécimes de gastrópodes-do-pé-escamoso por meio de fotografias, microscopia eletrônica e reconstruções tomográficas em 3D. Os resultados desta pesquisa foram expostos em um artigo publicado na revista Frontiers in Zoology em 2015. Trouxemos as principais informações para você.
LOCAL DE COLETA E METODOLOGIAS UTILIZADAS
Os organismos analisados foram coletados na falha geológica do sudoeste do Oceano Índico, em um local conhecido como “Chaminé Tiamat” (referência ao desenho animado ‘Caverna do dragão’), a 2.785 metros de profundidade, utilizando um amostrador acoplado a um veículo submarino operado remotamente.
Local de coleta dos espécimes de gastrópode-do-pé-escamoso, para estudo. Fonte: adaptado de Google Earth Pro.
No local, foram encontradas densas populações de C. squamiferum em áreas com intenso fluxo de sulfeto de hidrogênio (H2S). Após a coleta, dez espécimes foram dissecados e fotografados. Posteriormente foram analisados por microscopia eletrônica para capturar os pequenos detalhes anatômicos dos animais. Por fim, foi feita uma reconstrução tomográfica em 3D dos espécimes coletados para uma análise mais detalhada da anatomia interna.
SISTEMAS DIGESTÓRIO E EXCRETOR
Os organismos analisados apresentaram uma longa rádula, estrutura denteada com função de auxiliar a alimentação do gastrópode. O esôfago se conecta a uma grande glândula esofágica e representa cerca de 9,8% do volume corporal. Essa glândula secreta muco que facilita o transporte do alimento ao longo do esôfago.
Na glândula esofágica encontram-se bactérias que vivem em endossimbiose com o gastrópode-de-pé-escamoso. Na pesquisa em questão não foi possível identificar as espécies dessas bactérias. Há estudos que mostram que os endossimbiontes do gastrópode-de-pé-escamoso são capazes de alternar entre a respiração aeróbica (mais eficiente) e anaeróbica (menos eficiente), a depender da disponibilidade de oxigênio no local.
O esôfago se conecta ao estômago, que possui pelo menos três conexões com uma extensa e inconsolidada glândula digestiva. De maneira geral, o intestino dos organismos apresentaram incrustações de material calcário não identificado, e grânulos de enxofre produzidos pelas bactérias endossimbiontes como forma de desintoxicação de sulfeto de hidrogênio do gastrópode.
Reconstrução em 3D do gastrópode-do-pé-escamoso. Fonte: adaptado de Chen et al. (2015) (CC BY 4.0).
SISTEMAS RESPIRATÓRIO E CIRCULATÓRIO
Os organismos apresentaram um ctenídeo, órgão respiratório presente em alguns moluscos, ocupando cerca de 15,5% do volume corporal. A brânquia é larga, para atender às demandas respiratórias. De forma geral, o sistema circulatório da espécie é notavelmente maior em comparação com outros gastrópodes.
O sistema cardiovascular elaborado com um coração poderoso ajuda a circular oxigênio ou sulfeto de hidrogênio pela corrente sanguínea, suprindo as necessidades do próprio gastrópode (oxigênio) e suas bactérias endossimbióticas (oxigênio e sulfeto). O artigo indicou que há necessidade de novos estudos centrados nessas bactérias que vivem em endossimbiose com o gastrópode-de-pé-escamoso para revelar se elas possuem pigmentos respiratórios (semelhante aos pigmentos das algas) em suas células que se ligam a sulfetos ou um meio alternativo de sulfeto.
Reconstrução em 3D do gastrópode-do-pé-escamoso. Fonte: adaptado de Chen et al. (2015) (CC By 4.0).
O coração proeminente do gastrópode tem ventrículo bem desenvolvido, com paredes musculares espessas e estimado em 4% do seu volume corporal. O coração humano, para fins de comparação, ocupa cerca de 1,3% do volume corporal. A robustez do órgão objetiva a sucção que extrai sangue das brânquias do gastrópode para o resto do seu sistema circulatório.
SISTEMA REPRODUTOR
O gastrópode-de-pé-escamoso é hermafrodita, ou seja, tem testículos e ovários em um mesmo indivíduo. Em um espécime analisado, foi observado que um espermatóforo (reservatório de espermatozóides) havia saído do gonóporo (orifício do aparelho reprodutor), evidenciando uma possível fertilização interna.
O sistema reprodutor do gastrópode-de-pé-escamoso é semelhante ao sistema reprodutor dos demais representantes da família Neomphalidae, de gastrópodes habitantes de fontes hidrotermais. No entanto, o C. squamiferum foi a única espécie desta família conhecida por ser hermafrodita, permitindo maior fecundidade.
Fotografia de corte transversal do gastrópode-do-escamoso, com indicação dos órgãos do sistema reprodutor e reto. Fonte: adaptado de Chen et al. (2015) (CC BY 4.0).
CONCLUSÕES
A pesquisa foi um bom exemplo de como a anatomia interna de organismos ajuda a melhorar o entendimento de como uma espécie se relaciona com o ambiente em que vive. Os animais que vivem em fontes hidrotermais necessitam de adaptações morfológicas e fisiológicas que atendam as necessidades energéticas em uma cadeia alimentar baseada na quimioautotrofia (obtenção de energia a partir de compostos inorgânicos). No caso do C. squamiferum, os autores especulam que a estratégia de abrigar bactérias endossimbióticas em uma glândula esofágica de grande tamanho foi o catalisador para inovações anatômicas.
O gastrópode-de-pé-escamoso vive em áreas de águas ácidas e possui uma estrutura de escamas biomineralizadas com sulfeto de ferro, que também funciona como um meio de desintoxicação de resíduos tóxicos de sulfeto. Possui bactérias endossimbiontes que realizam a quimiossíntese, além da armadura.
Bibliografia
CHEN, C.; COPLEY, J. T.; LINSE, K.; ROGERS, A. D.; SIGWART, J. D. The heart of a dragon: 3d anatomical reconstruction of the ‘scaly-foot gastropod’ (Mollusca: Gastropoda: Neomphalina) reveals its extraordinary circulatory system. Frontiers in Zoology, [S.L.], v. 12, n. 1, p. 1-16, 2015. Springer Science and Business Media LLC. http://dx.doi.org/10.1186/s12983-015-0105-1.
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