Autores: Roberto Rodrigues Peres, Fernanda Cabral, Raphaela A. Duarte Silveira e Douglas F. Peiró
Roberto R. Peres, um neocaiçara, realizando pesca no modelo tradicional. Fonte: © Roberto Rodrigues Peres.
As comunidades ou povos tradicionais constituem grupos modelados com organizações sociais próprias e que possuem intrínseca ligação com os territórios e recursos naturais utilizados para a sua sobrevivência. Os conhecimentos e práticas pertencentes às comunidades tradicionais são únicos e são transmitidos oralmente de geração em geração, de forma a organizar e perpetuar sua cultura.
A cultura é definida por elementos significativos que identificam a memória coletiva de um grupo, como crenças, sistemas linguísticos, costumes, vestimentas, objetos materiais, entre outros. Altamente variável e adquirida por meio do aprendizado, a cultura permite a adaptação humana ao ambiente natural em que o grupo está estabelecido. Existem diversos tipos de culturas e comunidades tradicionais espalhadas pelo mundo que, atualmente, de forma trágica, sofrem com a desvalorização e a perda da identidade como, por exemplo, a cultura caiçara.
A CULTURA CAIÇARA
Os caiçaras constituem uma comunidade tradicional que habita a região entre o mar e a serra, desde o Paraná até o Rio de Janeiro. Seus hábitos próprios que os identificam enquanto caiçaras foram originados a partir da mescla dos costumes indígenas, portugueses e dos escravos africanos. Dentre as características, estão: a comida, a vestimenta, o artesanato, a agricultura, as formas de falar e as atividades profissionais.
Durante muito tempo, as terras litorâneas férteis permitiram o exercício da agricultura rotativa como complemento à pesca, cultivando arroz, feijão, milho e, principalmente, a mandioca. No entanto, uma das principais referências do caiçara é a utilização de recursos marinhos para a preparação de pratos típicos, como peixes e frutos do mar (consumo da tainha no inverno e da corvina no verão), servidos com farinha de mandioca. Outra característica marcante da cultura caiçara é a canoa de voga. Essas embarcações são escavadas a partir do tronco de uma árvore e antigamente eram utilizadas para o transporte de insumos e produtos em viagens de longa distância, geralmente em direção à Santos (SP) e Angra dos Reis (RJ). Hoje ainda são utilizadas, porém para atividades de pesca em curta distância.
Canoa de voga, típica das comunidades caiçaras. Fonte: Joao lara mesquita/Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0).
A necessidade de sobrevivência no ambiente em que os caiçaras estão localizados originou conhecimentos profundos e específicos sobre a Mata Atlântica e sobre os animais e plantas da região. Porém, essa realidade e a sua identidade podem estar em processo de transformação no mundo moderno.
O NEOCAIÇARA
O desenvolvimento das cidades aconteceu com a expansão das atividades comerciais, como abertura de novos portos para importação e exportação de produtos, construção de rodovias para a comunicação com outros centros comerciais e, consequentemente, a expansão do turismo, atraído pelas belas paisagens. Dessa forma, o antigo cenário transformou-se, dando lugar à especulação imobiliária, ao grande fluxo de informações e pessoas, além de restrições à pesca, caça e agricultura tradicional.
O desenvolvimento das cidades moldou seu cenário, dando lugar ao grande fluxo de pessoas e à especulação imobiliária. Fonte: Massachusetts Office Of Travel & Tourism/Flickr (CC BY-ND 2.0).
A transformação do cenário global e social moderno levou a um distanciamento dos costumes tradicionais, a fim de haver um novo encaixe social, sem que sua existência cultural seja eliminada, assim como a sua memória e identidade. A cultura humana é cumulativa e tem o potencial de se adaptar e persistir em um mundo contemporâneo. Dessa forma, as identidades tradicionais como os caiçaras podem enfrentar uma crise de identidade e, posteriormente, emergirem em novos papéis, como o neocaiçara.
Além da globalização, o neocaiçara enfrenta cenários desafiadores à sobrevivência individual e cultural, como o aquecimento global, a elevação do nível do mar, a exploração desenfreada de recursos naturais e um mercado de trabalho competitivo. O neocaiçara é justamente o resultado da longa mudança ocorrida no espaço e no tempo desta comunidade tradicional que, agora, busca interagir com o ambiente de outra forma, adequando-se a uma realidade diferente da que se desenvolveu historicamente.
Um exemplo de adaptação seria por meio do empreendedorismo e da inserção no setor turístico sustentável e o ecoturismo, uma área que valoriza as pessoas, a preservação do ambiente e a transmissão cultural por meio da fala. Dessa forma, o neocaiçara, enquanto indivíduo, é capaz de sobreviver e perpetuar a cultura caiçara a outras gerações, apesar de transmutada.
Em nossas pesquisas, encontramos o termo neocaiçara pela primeira vez na monografia de conclusão de curso Neocaiçara: arranjo cultural (2011) de Roberto Rodrigues Peres, descendente direto de caiçaras originais da Praia do Lázaro, na cidade de Ubatuba - SP.
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Bibliografia
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